sexta-feira, julho 06, 2007

O verão do topless

Publicado em 25/01/2000 no site da revista Isto É
por Valéria Propato

A moda dos seios de fora é liberada no Rio depois que a polícia reprime uma banhista em clima de show

Houve o verão da barriga grávida de Leila Diniz. Da tanga de crochê de Fernando Gabeira. Das latas de maconha prensada lançadas ao mar. Do arrastão promovido por gangues de favelas. Do apito que maconheiros de plantão sopravam quando a polícia aparecia. Para batizar um verão, a criatividade do carioca parece não ter fim. No ano 2000 não será diferente. Este, sem dúvida, vai ser o verão do topless. Seios de fora foram liberados nas areias cariocas para quem tiver - ou não - o que mostrar. Na quarta-feira 19, o secretário de Segurança Pública do Estado, Josias Quintal, fez publicar no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro portaria determinando que a Polícia Militar não reprima as banhistas que ousarem ir à praia sem a parte de cima do biquíni. Em outras palavras, liberou geral.

A heroína dessa conquista feminina é a representante comercial Rosimeri Moura Costa, 34 anos. Três dias antes, ela havia, literalmente, peitado mais de 20 PMs armados reivindicando o direito de bronzear-se sem o sutiã na Reserva Biológica do Recreio, zona oeste do Rio. O detalhe é que a operação policial - comandada pela 7ª Companhia Independente da Polícia Militar a pedido de banhistas que se sentiram incomodados com os seios de Rosimeri - foi comunicada por uma fonte da PM à Rede Globo. Os policiais esperaram pacientemente a equipe de reportagem chegar para armar o circo. Na frente das câmeras, Rosimeri teve o braço torcido e foi arrastada para a delegacia de polícia mais próxima. Embora não haja nenhuma referência explícita ao topless no Código Penal, elaborado em 1940, época em que as mulheres frequentavam as praias com pudicos maiôs, Rosimeri foi autuada com base no artigo 233, que considera crime a prática de ato obsceno em lugar público.

Para muitos advogados, o enquadramento foi tecnicamente correto. "Enquanto o código estiver vigente, ele deve ser acatado", afirmou o presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, Luiz Flávio Borges D'Urso. O problema é que, como não especifica o que seja ato obsceno, a lei sugere ampla interpretação. "Ela pode permitir a assimilação de novos costumes e também dar abertura para que preconceitos e valores pessoais sejam externados", explica a procuradora do Estado e professora de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mônica de Melo. As autoridades, entretanto, preferiram ficar do lado de Rosimeri. O governador Anthony Garotinho chegou a pedir desculpas pela truculência dos agentes da lei. "Foi um exagero. Não há nenhuma orientação do governo para combater isso à bala", disse. O prefeito Luiz Paulo Conde foi mais longe e prometeu liberar por decreto áreas para a prática de nudismo. "Não vejo nada de mal e não tem erotismo nisso. E quem quiser, pode fazer topless", tranquilizou Conde. O cardeal-arcebispo do Rio, dom Eugênio Salles, entretanto, não engoliu essa liberação toda e esbravejou durante entrevista após a missa de São Sebastião do Rio de Janeiro, realizada no dia 20, aniversário da cidade. Para ele, a prática do topless e a idéia de se criar uma área de nudismo é absolutamente infeliz. "Isso só vem aumentar os males que nos afligem. Há tantos problemas a serem resolvidos por nossos governantes que eles não deveriam criar mais um como este", disse. Logo após a declaração do cardeal, Anthony Garotinho voltou atrás em suas idéias liberais. O governador afirmou nunca ter sido a favor do topless, mas sim contrário ao armamento pesado para reprimi-lo. "A PM poderá ser acionada se alguém se sentir incomodado, mas não agirá com violência", ressaltou.

Protesto
Bastou Rosimeri ser reprimida cinematograficamente para que mulheres e mocinhas, com a típica irreverência carioca, desamarrassem o sutiã em protesto. "É ridículo que a polícia se preocupe com isso. E as banhistas que reclamam têm inveja", alfinetou a modelo Christine Niemeyer, 35 anos, que fez plantão na praia exibindo os dotes que a natureza lhe deu. "Esse foi o grande mico do verão. A polícia só quis chamar atenção", esperneou a atriz e cantora Daniele Daumerie (a moça da capa e ex-mulher do cantor Lobão), 31 anos. Até quem nunca tinha experimentado exibir os seios em público curtiu a liberdade. "Criei coragem. Não vejo nada demais em mostrar uma das partes mais bonitas do corpo da mulher", diz a estudante Paula Moretti, 26 anos.

No Posto 9, um grupo de estudantes cobriu os seios com cartazes de protesto: "Mulher de peito tem que ter respeito; No meu corpo mando eu; Abaixo a hipocrisia." Alguns homens entraram na briga e vestiram os sutiãs das amigas. Outros, assanhados, gritavam "tira, tira, tira tudo". Ninguém jogou pedra ou foi expulso, como acontecia na década de 80 com mulheres que se atrevessem a tirar o sutiã. "O Rio sem topless é muito suburbano", pixou o poeta Guilherme Zarvos, 42 anos. "Coisa bonita é para se ver", resumiu o aposentado José de Oliveira, 65 anos. A manifestação das adolescentes, claro, foi em Ipanema, berço das principais transformações comportamentais do País nos últimos 30 anos. Só que, há três décadas, a arte de exibir os seios nas areias escaldantes era um hábito cultivado por gente tida como excêntrica ou no mínimo exibicionista na ótica da maior parte da população. Na época, o topless integrava uma pauta de reivindicações que incluía, entre outros temas explosivos, o amor livre e a liberação do uso de drogas.

Bem-comportadas
No verão do ano 2000, o gesto de mostrar os seios no meio de banhistas não é privilégio de nenhuma vanguarda. É protagonizado por pessoas bem-comportadas e que vivem longe dos arroubos modernistas dos intelectuais da zona sul - Rosimeri mora em Anchieta, na zona norte do Rio. "É uma evolução. Mulheres simples, que não fazem bronzeamento artificial nem desfilam no Sambódromo, estão ultrapassando os limites da sexualidade reprimida. E os homens estão apoiando", festeja o sexólogo ca-rioca Marcos Ribeiro, autor do livro Sexo e mistério. "Isso não aconteceu antes porque o movimento feminista não atingiu as classes populares. A entrada no mercado de trabalho e a discussão da sexualidade provocada pela Aids é que fizeram as mulheres encarar o corpo com mais naturalidade", acrescenta Ribeiro. Fernando Gabeira, que abandonou suas performances no Posto 9 para virar deputado federal pelo PV e conseguiu aprovar um anteprojeto que regulamenta o naturismo no Brasil, também comemora a mudança. "Houve um avanço inegável na sociedade. A coisa mudou. Mas ainda há muito a fazer. A cabeça dos policiais que reprimiram o topless na praia é uma espécie de bomba-relógio prestes a explodir contra a cidade", afirma.

Rosimeri passou um bom tempo praticando topless na piscina de sua casa. Há quatro meses, resolveu ficar mais natural também na praia, na companhia do namorado, Antonio Saraiva, 62 anos, e dos dois filhos adolescentes. "Trabalho de segunda a sexta-feira e não vejo nada de mais em estar à vontade no fim de semana", observou Rosimeri. "Os peitos das mulheres aparecem em revista, televisão, escola de samba. É inacreditável que nos tenham prendido por causa disso", queixou-se Saraiva, que também foi agredido por defender a amada. Depois dessa confusão, ele ficou tão orgulhoso da namorada que resolveu pedi-la em casamento.

Solução
A liberação do topless e a criação de áreas de nudismo parecem ter sido a melhor solução que Garotinho e Conde encontraram para proteger a imagem e o bolso da cidade. O governo da Bahia aproveitou a oportunidade para tirar uma casquinha do episódio, publicando nos principais jornais do País na quinta-feira 20 um anúncio de meia página onde aparece uma índia seminua, com o dizer "Topless na Bahia pode desde 1500."

Os turistas estrangeiros não aprovaram nem um pouco a hostilidade policial contra Rosimeri. E o Rio está cheio deles. Em 1999, dois milhões de estrangeiros desembarcaram na cidade e a expectativa é de que esse número cresça 30% em 2000. Até o Carnaval, deverão entrar na cidade pela mão da turistada US$ 120 milhões. "As pessoas devem ser livres para fazer o que querem. Vim para o Brasil em busca de liberdade e é uma vergonha o que vi aqui. Não combina com o Rio", reclamou o estudante israelense David Cohen, 24 anos, cabelo pintado de violeta. "Fui assaltado com uma faca em Copacabana e não tinha um policial por perto. Agora já sei onde eles estavam. Isso repercute muito mal. Na Europa o topless e o nudismo são comportamentos naturais", lamentou-se o inglês Keath Pirelli, 46 anos. Se voltar ao Brasil, Pirelli vai ter uma boa surpresa. Na próxima semana, o prefeito Luiz Paulo Conde deve assinar decreto criando uma praia de nudismo - o local ainda não foi definido - com guarita, placa informativa e guardas municipais.

Não é difícil entender por que o nu ainda provoca tanta polêmica no Brasil. Existe entre os brasileiros um costume arraigado de ver a sexualidade como único atributo do corpo. "É muito difícil para o brasileiro desvincular o corpo de sua função sexual. O corpo nu é a promessa de um relacionamento sexual sempre", declara a antropóloga da Escola de Comunicação da UFRJ Ilana Strozemberg. A estudante Monique Evelin, 25 anos, já decidiu que irá mudar de areia quando topar com um par de peitos sem sutiã. "É vulgar. A praia está cheia de crianças e não acho legal", confessa. O psicólogo paulista Mauro Hegenberg não vê mal nenhum na prática do topless. "A mulher está apenas exercitando a sua sexualidade, o prazer de ser olhada, admirada. Quem ataca certamente sente inveja dessa felicidade, tem dificuldade de usufruir de sua própria sexualidade", opina. Entre as mulheres, Monique também parece estar mais para exceção que para a regra. A julgar pelos comentários entre um mergulho e um chope, o topless vai esquentar a praia neste verão. E as mulheres já se preparam para enfrentar a concorrência. "Me aguardem, porque agora que liberou vou caprichar no silicone. Quero deixar o meu seio empinado também quando estou deitada", planeja a atriz Daniele Daumerie. Com essa deixa de Daniele, dá para prever que o verão de 2001 promete ser ainda mais sensual e tem grandes chances de ganhar o apelido de verão do silicone.

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